sábado, 27 de dezembro de 2014

As utopias revolucionárias

No século XIX, em decorrência do otimismo trazido pelas idéias de progresso,
desenvolvimento técnico-científico, poderio humano para construir uma vida
justa e feliz, a Filosofia apostou nas utopias revolucionárias - anarquismo,
socialismo, comunismo -, que criariam, graças à ação política consciente dos
explorados e oprimidos, uma sociedade nova, justa e feliz.
No entanto, no século XX, com o surgimento das chamadas sociedades
totalitárias - fascismo, nazismo, stalinismo - e com o aumento do poder das
sociedades autoritárias ou ditatoriais, a Filosofia também passou a desconfiar do
otimismo revolucionário e das utopias e a indagar se os seres humanos, os
explorados e dominados serão capazes de criar e manter uma sociedade nova,
justa e feliz.
O crescimento das chamadas burocracias - que dominam as organizações
estatais, empresariais, político-partidárias, escolares, hospitalares - levou a
Filosofia a indagar como os seres humanos poderiam derrubar esse imenso
poderio que os governa secretamente, que eles desconhecem e que determina
suas vidas cotidianas, desde o nascimento até a morte.

A cultura



No século XIX, a Filosofia descobre a Cultura como o modo próprio e específico
da existência dos seres humanos. Os animais são seres naturais; os humanos,
seres culturais. A Natureza é governada por leis necessárias de causa e efeito; a
Cultura é o exercício da liberdade.
A cultura é a criação coletiva de idéias, símbolos e valores pelos quais uma
sociedade define para si mesma o bom e o mau, o belo e o feio, o justo e o
injusto, o verdadeiro e o falso, o puro e o impuro, o possível e o impossível, o
inevitável e o casual, o sagrado e o profano, o espaço e o tempo. A Cultura se
realiza porque os humanos são capazes de linguagem, trabalho e relação com o
tempo. A Cultura se manifesta como vida social, como criação das obras de
pensamento e de arte, como vida religiosa e vida política.
Para a Filosofia do século XIX, em consonância com sua idéia de uma História
universal das civilizações, haveria uma única grande Cultura em
desenvolvimento, da qual as diferentes culturas seriam fases ou etapas. Para
alguns, como os filósofos que seguiam as idéias de Hegel, o movimento do
desenvolvimento cultural era progressivo.
Para outros, chamados de filósofos românticos ou adeptos da filosofia do
Romantismo, as culturas não formavam uma seqüência progressiva, mas eram
culturas nacionais. Assim, cabia à Filosofia conhecer o “espírito de um povo”
conhecendo as origens e as raízes de cada cultura, pois o mais importante de uma
cultura não se encontraria em seu futuro, mas no seu passado, isto é, nas
tradições, no folclore nacional.
No entanto, no século XX, a Filosofia, afirmando que a História é descontínua,
também afirma que não há a Cultura, mas culturas diferentes, e que a
pluralidade de culturas e as diferenças entre elas não se devem à nação, pois a
idéia de nação é uma criação cultural e não a causa das diferenças culturais.
Cada cultura inventa seu modo de relacionar-se com o tempo, de criar sua
linguagem, de elaborar seus mitos e suas crenças, de organizar o trabalho e as
relações sociais, de criar as obras de pensamento e de arte. Cada uma, em
decorrência das condições históricas, geográficas e políticas em que se forma,
tem seu modo próprio de organizar o poder e a autoridade, de produzir seus
valores.
Contra a filosofia da cultura universal, a Filosofia do século XX nega que haja
uma única cultura em progresso e afirma a existência da pluralidade cultural.
Contra a filosofia romântica das culturas nacionais como expressão do “espírito
do povo ” e do conjunto de tradições, a Filosofia do século XX nega que a
nacionalidade seja causa das culturas (as nacionalidades são efeitos culturais
temporários) e afirma que cada cultura se relaciona com outras e encontra dentro
de si seus modos de transformação. Dessa maneira, o presente está voltado para o
futuro, e não para o conservadorismo do passado.

Fonte: Chaui, Marilena. Convite à filosofia, Capítulo 5.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Aspectos da Filosofia contemporânea

As questões discutidas pela Filosofia contemporânea

Dissemos, no capítulo anterior, que a Filosofia contemporânea vai dos meados do
século XIX até nossos dias e que, por estar próxima de nós, é mais difícil de ser
vista em sua generalidade, pois os problemas e as diferentes respostas dadas a
eles parecem impossibilitar uma visão de conjunto.
Em outras palavras, não temos distância suficiente para perceber os traços mais
gerais e marcantes deste período da Filosofia. Apesar disso, é possível assinalar
quais têm sido as principais questões e os principais temas que interessaram à
Filosofia neste século e meio.

História e progresso 

O século XIX é, na Filosofia, o grande século da descoberta da História ou da
historicidade do homem, da sociedade, das ciências e das artes. É particularmente
com o filósofo alemão Hegel que se afirma que a História é o modo de ser da
razão e da verdade, o modo de ser dos seres humanos e que, portanto, somos
seres históricos.
No século passado, essa concepção levou à idéia de progresso, isto é, de que os
seres humanos, as sociedades, as ciências, as artes e as técnicas melhoram com o
passar do tempo, acumulam conhecimento e práticas, aperfeiçoando-se cada vez
mais, de modo que o presente é melhor e superior, se comparado ao passado, e o
futuro será melhor e superior, se comparado ao presente.
Essa visão otimista também foi desenvolvida na França pelo filósofo Augusto
Comte, que atribuía o progresso ao desenvolvimento das ciências positivas. Essas
ciências permitiriam aos seres humanos “saber para prever, prever para prover”,
de modo que o desenvolvimento social se faria por aumento do conhecimento
científico e do controle científico da sociedade. É de Comte a idéia de “Ordem e
Progresso”, que viria a fazer parte da bandeira do Brasil republicano.
No entanto, no século XX, a mesma afirmação da historicidade dos seres
humanos, da razão e da sociedade levou à idéia de que a História é descontínua e
não progressiva, cada sociedade tendo sua História própria em vez de ser apenas
uma etapa numa História universal das civilizações.
A idéia de progresso passa a ser criticada porque serve como desculpa para
legitimar colonialismos e imperialismos (os mais “adiantados” teriam o direito de
dominar os mais “atrasados”). Passa a ser criticada também a idéia de progresso

das ciências e das técnicas, mostrando-se que, em cada época histórica e para
cada sociedade, os conhecimentos e as práticas possuem sentido e valor próprios,
e que tal sentido e tal valor desaparecem numa época seguinte ou são diferentes
numa outra sociedade, não havendo, portanto, transformação contínua,
acumulativa e progressiva. O passado foi o passado, o presente é o presente e o
futuro será o futuro. 

As ciências e as técnicas


No século XIX, entusiasmada com as ciências e as técnicas, bem como com a
Segunda Revolução Industrial, a Filosofia afirmava a confiança plena e total no
saber científico e na tecnologia para dominar e controlar a Natureza, a sociedade
e os indivíduos.
Acreditava-se que a sociologia, por exemplo, nos ofereceria um saber seguro e
definitivo sobre o modo de funcionamento das sociedades e que os seres
humanos poderiam organizar racionalmente o social, evitando revoluções,
revoltas e desigualdades.
Acreditava-se, também, que a psicologia ensinaria definitivamente como é e
como funciona a psique humana, quais as causas dos comportamentos e os meios
de controlá-los, quais as causas das emoções e os meios de controlá-las, de tal
modo que seria possível livrar-nos das angústias, do medo, da loucura, assim
como seria possível uma pedagogia baseada nos conhecimentos científicos e que
permitiria não só adaptar perfeitamente as crianças às exigências da sociedade,
como também educá-las segundo suas vocações e potencialidades psicológicas.
No entanto, no século XX, a Filosofia passou a desconfiar do otimismo
científico-tecnológico do século anterior em virtude de vários acontecimentos: as
duas guerras mundiais, o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki, os campos de
concentração nazistas, as guerras da Coréia, do Vietnã, do Oriente Médio, do
Afeganistão, as invasões comunistas da Hungria e da Tchecoslováquia, as
ditaduras sangrentas da América Latina, a devastação de mares, florestas e terras,
os perigos cancerígenos de alimentos e remédios, o aumento de distúrbios e
sofrimentos mentais, etc.
Uma escola alemã de Filosofia, a Escola de Frankfurt, elaborou uma concepção
conhecida como Teoria Crítica, na qual distingue duas formas da razão: a razão
instrumental e a razão crítica.
A razão instrumental é a razão técnico-científica, que faz das ciências e das
técnicas não um meio de liberação dos seres humanos, mas um meio de
intimidação, medo, terror e desespero. Ao contrário, a razão crítica é aquela que
analisa e interpreta os limites e os perigos do pensamento instrumental e afirma
que as mudanças sociais, políticas e culturais só se realizarão verdadeiramente se
tiverem como finalidade a emancipação do gênero humano e não as idéias de
controle e domínio técnico-científico sobre a Natureza, a sociedade e a cultura.
 

Fonte: Chaui, Marilena. Convite à filosofia, Capítulo 5.