domingo, 7 de junho de 2015

Uma terceira concepção da verdade



   Quando falamos sobre Filosofia contemporânea, fizemos referência a um tipo de
filosofia conhecida como filosofia analítica.
A filosofia analítica dedicou-se prioritariamente aos estudos da linguagem e da
lógica e por isso situou a verdade como um fato ou um acontecimento lingüístico
e lógico, isto é, como um fato da linguagem. A teoria da verdade, nessa filosofia,
passou por duas grandes etapas.
Na primeira, os filósofos consideravam que a linguagem produz enunciados
sobre as coisas – há os enunciados do senso-comum ou da vida cotidiana e os
enunciados lógicos formulados pelas ciências. A pretensão da linguagem, nos
dois casos, seria a de produzir enunciados em conformidade com a própria
realidade, de modo que a verdade seria tal conformidade ou correspondência
entre os enunciados e os fatos e coisas.
Essa conformidade ou correspondência seria inadequada e imprecisa na
linguagem natural ou comum (nossa linguagem cotidiana) e seria adequada,
rigorosa e precisa na linguagem lógica das ciências. Por isso, a ciência foi
definida como “linguagem bem feita” e concebida como descrição e “pintura” do
mundo.
No entanto, inúmeros problemas tornaram essa concepção insustentável. Por
exemplo, se eu disser “estrela da manhã” e “estrela da tarde”, terei dois
enunciados diferentes e duas pinturas diferentes do mundo. Acontece, porém, que
esses dois enunciados se referem ao mesmo objeto, o planeta Vênus. Como posso
ter dois enunciados diferentes para significar o mesmo objeto ou a mesma coisa?
Um outro exemplo, conhecido com o nome de “paradoxo do catálogo ”, também
pode ilustrar as dificuldades da teoria da verdade como correspondência entre
enunciado e coisa, em que a correspondência é uma “pintura” da realidade feita
pelas idéias.
Se eu disser que existe o catálogo de todos os catálogos, onde devo colocar o
“catálogo dos catálogos”? Isto é, o catálogo dos catálogos é um catálogo
catalogado por ele mesmo junto com os outros catálogos, ou é um catálogo que
não faz parte de nenhum catálogo? Se estiver catalogado, não pode ser catálogo
de todos os catálogos, pois será necessário um outro catálogo que o contenha;
mas se não estiver catalogado, não é o catálogo de todos os catálogos, pois em tal
catálogo está faltando ele próprio.
O que se percebeu nesse paradoxo é que a estrutura e o funcionamento da
linguagem não correspondem exatamente à estrutura e ao funcionamento das
coisas. Essa descoberta conduziu a filosofia analítica à idéia da verdade como
algo puramente lingüístico e lógico, isto é, a verdade é a coerência interna de
uma linguagem que oferece axiomas, postulados e regras para os enunciados e
que é verdadeira ou falsa conforme respeite ou desrespeite as normas de seu
próprio funcionamento.
Cada campo do conhecimento cria sua própria linguagem, seus axiomas, seus
postulados, suas regras de demonstração e de verificação de seus resultados e é a coerência interna entre os procedimentos e os resultados com os princípios que
fundamentam um certo campo de conhecimento que define o verdadeiro e o
falso. Verdade e falsidade não estão nas coisas nem nas idéias, mas são valores
dos enunciados, segundo o critério da coerência lógica.
Os filósofos empiristas tendem a considerar que os critérios anteriores são
puramente teóricos e que, para decidir sobre a verdade de um fato ou de uma
idéia, eles não são suficientes e podem gerar ceticismo, isto é, como há variados
critérios e como há mudanças históricas no conceito da verdade, acaba-se
julgando que a verdade não existe ou é inalcançável pelos seres humanos.
Para muitos filósofos empiristas, a verdade, além de ser sempre verdade de fato e
de ser obtida por indução e por experimentação, deve ter como critério sua
eficácia ou utilidade. Um conhecimento é verdadeiro não só quando explica
alguma coisa ou algum fato, mas sobretudo quando permite retirar conseqüências
práticas e aplicáveis. Por considerarem como critério da verdade a eficácia e a
utilidade, essa concepção é chamada de pragmática e a corrente filosófica que a
defende, de pragmatismo.

Fonte: Chaui, Marilena. Convite à filosofia, Unidade 3, Capítulo 3. (pág. 130 a 132) 

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